Tuesday, November 18, 2008

Me Inclua Fora Dessa



O petismo é um movimento totalitário detestável que, claro, me causa profunda repulsa. Apreensivo com sua irresistível ascensão, fui procurar argumentos intelectuais e morais contra ele no antipetismo. Fiquei algum tempo perambulando na praia antipetista. Identifiquei as “tribos”, observei as pessoas, escutei as conversas, mas nunca me senti realmente à vontade ali. O antipetismo é um aglomerado de correntes que, prestando bem atenção, não se encaixam. E o pior é que, olhando bem de perto, não pude deixar de notar que algumas dessas correntes têm muito em comum com o próprio petismo. O desconforto que sempre senti nessa praia, e não sabia explicar porque sentia, foi se explicando à medida que eu percebia que o antipetismo partilhava com o petismo premissas fundamentais que para mim são inaceitáveis. Inaceitáveis porque são premissas incorretas, erradas, falsas.

Mas esse assunto fica para outra hora. Voltando a tal praia antipetista, uma das “tribos” mais influentes, modernas e antenadas do pedaço era a galera do liberalismo. A companhia parecia agradável e me deixei ficar um bom tempo ali por perto, ouvindo os papos. Como os liberais dizem ter como princípios a preeminência da vida, da liberdade e da propriedade, eu gostei, porque achava que o lance é esse mesmo. Dizem também que se opõem à opressão estatal e eu também gostei. Só pode ser por aí.

Só que não era bem por aí, não. A tribo liberal se subdivide em muitas subtribos. Tem o liberalismo racionalista, o positivista e o empirista, o inglês e o continental, o clássico e o social-liberal, o hayekiano, o keynesiano e muitos outros. Veja-se o livrinho Liberalismo: Antigo e Moderno, do falecido Guilherme Merquior, ele mesmo um afamado liberal brasileiro. Acontece que se você fizer um conjunto com as hipóteses de intrusão estatal na esfera pessoal que cada uma dessas correntes liberais concede, o resultado é mais ou menos o regime soviético! Tudo computado e somado, o liberalismo concede tanto ao Estado quanto o petismo.

Embora diga se opor à intervenção estatal na economia, concede, por exemplo, que o Estado controle a oferta de moeda e os bancos por meio de um banco central, como apregoa o monetarismo de Chicago. Ora, quem controla a moeda controla a economia, porque a moeda é o que há de economicamente mais importante, é o elo que une todos os mercados e todos os negócios. Como quem dá o mais também tem que dar o menos, os seguidores de Keynes, Rawls e Bobbio concedem ainda que o Estado socialize o investimento e estabilize a demanda. Ou seja, concedem que, no âmbito da economia, o Estado faça tudo. Já que pode tudo na economia, pode tudo em tudo. Pode estatizar a previdência, institucionalizar a caridade, organizar a vida familiar e doméstica e por aí vai. É inútil argumentar que o liberalismo clássico de John Locke e Adam Smith é o único verdadeiro, pois não há critério fora e acima dessa ideologia que permita um juízo irrefutável. O liberalismo social com sua origem em Voltaire e Rousseau tem tanto direito ao título quanto qualquer outra vertente.

Eu fiz parte de um site de debates que reunia todas as correntes liberais, inclusive muitos nomes “famosos” no meio. Fiquei tão chocado com o que se dizia nas polêmicas que saí de lá rapidinho. Era ponto pacífico, por exemplo, que o Estado pode e deve elaborar e executar o “planejamento familiar”, eufemismo para as mais degradantes e nocivas interferências estatais na intimidade das famílias, como aborto, “educação” sexual, esterilização, fornecimento de anticoncepcionais etc. Os liberais acham o povão muito ignorante e propenso a se reproduzir em excesso, daí se pede ao Estado que intervenha em nome do controle demográfico, com medidas “educativas”, mas também coercitivas, se necessário for. Não sei se algo me escapou, mas como é possível condenar a intervenção estatal na esfera individual e ao mesmo tempo exigir do Estado que se imiscua no que há de mais íntimo nessa tal esfera?

A questão do aborto merece um parágrafo à parte. Há poucas unanimidades no seio do liberalismo, e o direito ao aborto é uma delas. Mas e aquela conversa de que o inalienável direito à vida se sobrepõe a tudo? Não era um princípio fundamental? Parece que não nesse caso, pois, afinal, a “coisa” no ventre materno não é pessoa, não é ser humano, não é indivíduo. O que ela é, então? Ora, a mim sempre pareceu evidente que o ser gerado por humanos, só pode ser humano também, uma pessoa autônoma desde a sua concepção. Essa pessoa autônoma tem que ter o mesmo direito inalienável à vida tanto fora quanto dentro do ventre de sua mãe. Entender o contrário é traçar uma distinção arbitrária entre os humanos: os que já nasceram têm direito à vida, os que ainda não nasceram, não têm. Bem, distinção arbitrária entre pessoas que merecem viver e pessoas que não merecem viver lembra alguma coisa. Alguém falou em nazismo? Pois é, pessoas das raças inferiores não têm, naturalmente, direito inalienável à vida. Aliás, não são nem pessoas. São coisas. O mesmo se diga do comunismo e sua distinção entre proletários e burgueses.

Enfim, tendo verificado que a turma liberal não era a minha turma, que eu nada tinha que fazer naquele pedaço da praia do antipetismo, recolhi toalha, caniço e samburá e fui procurar outra turma.